terça-feira, outubro 30, 2007

100 anos depois, o último sopro da tradição rural na Porcalhota


A antiga Porcalhota deu lugar, por decreto real de 28 de Outubro de 1907, à Amadora. No futuro da cidade não há lugar à ruralidade.

Joaquim Raposo assegura que o novo centro, na Falagueira, não será feito só com habitação, mas também com equipamentos.

Manuel Cardeal apoia-se no cajado e olha para a ainda extensa área de pasto entre a Falagueira e a Brandoa. "Tudo acaba", desabafa. Faz hoje 100 anos, um decreto do rei D. Carlos mudou o nome de Porcalhota para Amadora. A cidade está longe da "cidade-jardim" ambicionada pelos seus fundadores. Mas o território onde o pastor sempre viveu pode sofrer uma profunda transformação, se for por diante a criação de uma nova "centralidade" urbana.

Diariamente, milhares de pessoas são engolidas pelo metro da Falagueira. Manuel Cardeal, 72 anos, percorre os caminhos vizinhos com o rebanho de uma centena de ovelhas. Num concelho marcado pela densificação urbana, o pastor ocupa as manhãs da reforma a apascentar os animais nos últimos espaços livres do betão. Por quanto tempo, não sabe. Uma "dor numa anca" parece o sinal para assentar. O que não o deixa mais feliz, pois habituou-se à vida ao ar livre, mesmo quando empregado, como "complemento" para criar os filhos.

"O meu avô cultivava estes campos e dizia que dava mais um hectare de trigo aqui do que cinco hectares em alguns pontos do Alentejo", conta Manuel Cardeal, mirando do alto da encosta para as terras rasgadas pela estrada dos Salgados, que liga a Falageira à Pontinha. Esta zona de grandes propriedades agrícolas abastecia Lisboa. A Quinta do Tivoli, por exemplo, fornecia as unidades hoteleiras com o mesmo nome. Na Quinta do Estado, as instalações pecuárias estão ao abandono e só alguns terrenos são ainda aproveitados.

O pastor trabalhou na antiga Fábrica dos Ossos, no alto da Brandoa. Os ossos eram triturados e, transformados em carvão animal, serviam para refinar açúcar. A fábrica fechou e dela restam alguns muros. A vida melhorou com o emprego na Cel Cat, na Venda Nova, que transformava cobre em bruto em fios.

Era a época da intensa actividade industrial que levou para a área até à Reboleira unidades de produção de vidro e borracha ou metalomecânica e metalúrgica, como a Sorefame e Cometna. A necessidade de habitações baratas para o operariado impulsionou a construção, legal e clandestina. As enormes instalações fabris encontram-se agora tomadas pela ferrugem e ervas daninhas. Numas quantas funcionam médias empresas. A indústria farmacêutica parece prosperar. Na manhã de sexta-feira, num antigo armazém, meia dúzia de pessoas escutam, numa ampla plateia de cadeiras de plástico vazias, a homilia de um "pastor" no "Templo Sede da Assembléia de Deus do Ministério do Avivamento".

Manuel Cardeal recorda o tempo em que a Falagueira "era uma família com 30 moradores". "Já não se cultiva nada. Tudo acaba". O desabafo confirma o fim da tradição rural. As raras excepções encontram-se nas bermas das vias rápidas, como o IC19, ou na encosta da Brandoa, salpicada de barracos agrícolas. As azeitonas secam nas oliveiras. Pela hora do almoço recolhe as ovelhas com a ajuda dos cães. O ti Manuel antecipa a satisfação com o aniversário de uma das netas. No fim-de-semana em que a Amadora também cumpre um século.
A melhor água-pé

Na Rua Elias Garcia, o trânsito intenso avança ao sabor da vontade dos semáforos. A estrada atravessa o Bairro do Bosque, sítio da Porcalhota original. A antiga Vila Martelo, perto do quartel dos bombeiros, permanece de pé com as fachadas arruinadas. Oficinas abandonadas e casas entaipadas coexistem a poucos metros com modernos edifícios. Ironia, ou não, um cartaz camarário proclama "qualidade de vida" alcançada com os jardins criados na cidade. Ao cima da rua, a ribeira da Falagueira é disso testemunho, com o amplo espaço verde no lugar antes ocupado por barracas. O comércio tradicional vai resistindo à concorrência das grandes superfícies. É o caso da taberna e carvoaria a funcionar num edifício térreo. Um papel afixado à porta anuncia "a melhor água pé da Amadora".

"Ia levar carvão à Venda Nova em cestos à cabeça, com os filhos pela mão a chorar. Agora vêm cá buscar", conta Rita Madeira, 79 anos. Há meio século trocou a distante Vila Nova de Cerveira pelo namorado que a mandou buscar após montar a taberna. Os clientes são recebidos por uma fila de pipas. A marca B ou T indica a tonalidade e sabor do que levam dentro. Uns carapaus de escabeche numa vitrina convidam a uma "taçinha", como se diz hoje, em vez do "copo de três" de antanho.

"O negócio já esteve melhor", confessa a comerciante. O vinho tem mais saída. Para trás ficou o tempo em que carvão e petróleo eram a principal energia doméstica. Rita Madeira mostra agrado pela evolução que a Amadora conhece, com os espaços verdes, as escolas e as creches. Só o trânsito a incomoda. Mas não ao ponto de regressar à terra natal e menosprezar a cidade que lhe permitiu dar aos filhos vida diferente da sua: "Vim de lá com a roupa do corpo. Que saudades é que deixei lá?"

Fonte: Público - 28.10.2007

1 comentário:

Anónimo disse...

Olá!

Espero que este património se mantenha.

Aproveito para enviar os meus cumprimentos pelo trabalho dos ambientalistas da Amadora que em diversos Blogs espalham um pouco da semente que deveria germinar em cada um de nós sobre este tipo de sensibilidade necessária.

Em nome da Escola de Yôga da Amadora, os nossos respeitosos cumprimentos